It's been a long time since I rock and rolled... - Led Zeppelin
Música é talvez a linguagem que mais me cativa, em tantos sentidos. Desde pequena mergulho neste oceano de melodias e versos, que são responsáveis por modular meu humor. É possível afirmar que eu, desde sempre, pratique uma espécie de musicoterapia e musicomancia.
Me lembro das fitas k7 enumeradas de papai, e de nossas viagens ao Brás - pois sempre morei longe do centro - para comprar mais fitas virgens para ele gravar músicas noturnas na Antena 1. Numa dessas viagens, não me esqueço, voltamos para casa com alguns objetos novos chamados Compact Disc, o tal do CD. Foi tio Russell que ensinou a usar, com um exemplar das Olimpíadas, brinde das lojas Arapuã (ligadona em você). Papai tentou colocar ao contrário e eu, no alto dos meus 3,5 ou 4 anos disse: 'não, papai, é do outro lado'.
A cantora sempre foi mamãe. Aprendi a sambar com ela, 'Devagar, devagrinho', do Martinho da Vila. E aprendi a ter muita raiva de vários artistas porque o som era sempre no último volume muito cedo pela manhã. Mas com os tantos memes de influencers pelo mundo afora, penso ser normal de mãe acordar cedo para faxinar ouvindo as músicas do seu tempo.
Como sou rebelde do meu próprio tempo, é muito pouco o meu interesse por músicas atuais. Sempre preferi os setentismos, e tenho a teoria de que os melhores anos do rock and roll, do progressivo pelo menos, foram entre 67-73 (o auge, a aura), 74 foi bom, 75 okay, 76 em diante foi caindo na era da reprodutibilidade técnica. Pensando em termos benjaminianos mesmo. Claro, isto é questão de gosto.
Logo, é natural que, agora que tenho a idade que mamãe tinha quando eu era pequena e me aborrecia com seus bregas enquanto ela lavava roupa, eu vá lavar o banheiro ouvindo os mesmos bregas. Foi o que me fez pensar numa playlist. E, montando o carrossel da playlist, pensei: por que não começar logo esse plano de adolescência que é escrever sobre música?
Inauguro, portanto, uma nova seção no Estúdio São Jerônimo:
Os tais "bregas" são na verdade a mais alta poesia sobre o Amor. O distanciamento proporcionado pelo Tempo traz a possibilidade de apreciar a era de ouro das canções brasileiras, saudosas, nostálgicas, jerônimas como o português de O Cortiço.
Jerônimo só voltava à casa ao descair da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra deles. E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância. - O Cortiço
Evocando Mnemosine, preciso oferecer o vislumbre de um cenário, que creio ser universal, visto que Jerônimo vivia, e eu também vivi - e vivo.
É noite estrelada. Há uma roda de cadeiras no meio de um quintal, que pode ser tanto de cimento, como de caquinhos vermelhos. A lâmpada improvisada lá no alto se confunde com a Luz da Lua. São homens, mulheres, migrantes com seus 30+ anos, rindo, bebendo, contando histórias, causos, piadas, ao som de Reginaldo Rossi, por exemplo. Você, criança, se aborrece de sono, sentada numa cadeira e deitada no colo de alguém, que pode ser mãe, pai, tia ou avó. Luta contra o sono para ouvir as histórias, maravilhada em imaginá-las como aventuras navegantes. Mas quer que a música se acabe: são adultos cantando sofrimentos ininteligíveis. Pouco mais de vinte anos depois, você tem a idade daqueles adultos do passado, e se surpreende ao ouvir as mesmas canções, rindo e às vezes chorando de nostalgia. A lâmpada que pendia sob sua cabeça naquela década distante hoje se acende no seu coração. E você celebra, seja bebendo e/ou dançando, como nossos pais. É Mnemosine, Memória, quem dança com você.
Como fiz a playlist na véspera de uma data cabalística resolvi dedicá-la a São Valentim. Como uma Historiadora que se preze, preciso contextualizar:
Do Seu Valentim
Muitas são as explicações sobre esta data internacional, que faz pouco sentido para nós já que João Dória inventou o dia dos namorados aqui no Brasil (12 de junho), pensando em um calendário comercial que abrangesse aquele mês; a desculpa foi utilizar a data como véspera do dia de Santo Antônio, o santo casamenteiro (dizem as versadas no catolicismo que o correto é pedir marido a São José, já que ele foi um excelente marido para Maria, e Santo Antônio pode trazer amores não tão específicos, mas isto são derivações do tema).
Valentim é um mártir nascido em Terni e morto em Roma no século 3, e no início deste milênio era comum a execução de cristãos pelo Império Romano. Logo, é mártir porque teimou em ser cristão num mundo dominado por outros deuses. Eis algumas histórias lendárias que o associam aos namorados e ao Amor:
Quando Claudius II proibiu o casamento (cristão) de seus soldados - pois pensava que homens solteiros guerreavam melhor, sem as amarras de um amor que esperasse seu regresso -, Valentim continuava realizando matrimônio secreto de casais apaixonados;
Quando preso, por um milagre fez enxergar a filha cega de seu aprisionador - filha essa que dizem que se enamorou - e, antes de ser executado, deixou uma mensagem para ela com a seguinte assinatura: "Do seu Valentim".
A data 14 de fevereiro foi estabelecida pelo Sacramentarium Gelasianum, livro de liturgia cristã manuscrito com iluminura e encadernado em pergaminho no século 8. Nos séculos 14 e 15 o dia foi associado ao Amor, pelo florescimento do Amor Cortês, e daí vem os lovebirds: 14 e 15 de fevereiro são dias de cópula das aves, prenunciando a chegada da Primavera. A partir do século 18 apenas, começaram os presentes de buquês de flores e cartões enamorados. No século seguinte os cartões passaram a ser fabricados em massa, o casamento perfeito para os capitalistas em ascensão (a história se repete como farsa em 1949 com nosso brasileiro Dória).
Para o cristianismo ortodoxo (que tenho fervor em estudar), o dia de São Valentim não é em fevereiro, mas sim em 6 de julho - meu aniversário 💌
Tem muito mais para investigar, como qualquer História. Essas histórias foram fermentadas no fim do período medieval, e estão conectadas com a gênese do Amor Romântico. Fato é que, acontecendo ou não, as histórias que o povo diz, repete e materializa em tradição, são sonhos tornados realidade. O Amor é evocado nestas datas, gostem os céticos e revisionistas ou não.
Hoje foi dia de evocar a mãe, a titânide Mnemosine, como introdução aos cadernos musicais. Em breve, as filhas musas Clio e Euterpe se farão presentes, com muita História da Música para nós.
A playlist
A capa faz referência ao Codex Manesse, pergaminho iluminado em Zurique no século 14 e que reúne canções de amor medievais. Voltarei a ele em breve.
Mande sua cartinha de São Valentim!
Escolha seus versos favoritos e mande para aquela pessoa especial. 💘
Te dedico este texto
Referências
Codex Manesse (Universidade de Heidelberg)
Codex Manesse (Wikipedia)
O Cortiço (Aluísio Azevedo)*
A Curiosa história dos pisos de caquinhos de cerâmica (ArchDaily)
Gelasian Sacramentary (Wikipedia)
Saint Valentine (Britannica)
Saint Valentine (Wikipedia)
Valentine's Day (Wikipedia)
Valentine's Day fun facts (RockHillCoke)
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