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Minhas primeiras encadernações

Atualizado: 8 de mar


Moça deitada de bruços na relva, virando a página do livro enquanto sonha acordada.
Moça com livro. José Ferraz de Almeida Júnior, sem data. Foto: João Musa. Acervo MASP

O momento mais emocionante dos meus dias letivos era o da ida à papelaria com papai. Me lembro do cheiro do plástico azul de forrar a mesa, a expectativa com os lápis grafite e de cor. Mas o que definiria mesmo o início de meu ano letivo era o caderno.


Sempre tive cadernos aleatórios de flores, cor chapada ou casais surfistas numa breguice que só os anos 2000 puderam proporcionar. E eu separava assim: o caderno mais bonito e de cores frias ia para minha matéria favorita na época — ciências —, o de cores quentes e não tão bonito assim, mas quase, ia para História e Geografia. Idem Português e minha então favorita Matemática. Mas essa regra era válida para a quarta-série (atual quinto ano) onde as disciplinas ainda eram poucas e os cadernos de uma matéria.


A partir da quinta-série mudei de escola e também da infância para a pré e depois adolescência. O período mais idiota da minha vida, mas também importa por ser origem de tantas coisas. Nessa época migrei para o fichário e tentei (oh, my God, I tried all the time in this institution) ser aquele estereótipo de mocinha com folhas ilustradas e caligrafia perfeita, canetas de gel e tantas futilidades. Mas folha de fichário se rasga, se perde, os blocos-refil não combinam, etc. O bom de tudo isso é que me lembro de dias, horas, sentimentos e disciplinas específicas de quase vinte anos atrás, porque minha memória é visual.


Voltei para o caderno pela praticidade e em 2007 pude ter dois que revelavam minha identidade — coisa muito importante para a autoafirmação do adolescente — de estudante da oitava série. Nessa época eu já era fã incondicional de Red Hot Chili Peppers e ouvia os clichês dos clássicos do rock e heavy metal. Também chegava da escola para almoçar assistindo desenho animado. Digo isso porque a febre da época era Naruto (eu só me interessei pela parte que foi televisionada pelo SBT) e a banda de rock padrão para qualquer roqueiro era Iron Maiden. Então era isso que se vendia nas pequenas papelarias de bairro, e isso que adquiri, me sentindo um passo mais próximo de ser adulta.


Dois homens adultos tocando um teclado de chão com os pés, enquanto diversas pessoas assistem.
Robert Loggia e Tom Hanks. Quero ser grande, 1988 | Fonte: Reprodução

Lembro que, ao comprar o do Iron (que tinha umas três opções de capa diferentes), busquei em vão, mas com fé, um do RHCP. Não tinha, só Iron e Green Day, que é uma banda simpática, mas muito próxima de gêneros musicais que até hoje detesto. Escolhi e comprei a capa mais aterrorizante do Iron 😈 (e eu ri porque dentro, até hoje, tem santinhos no saquinho; satanista mas na época bem católica, ecumênica ao extremo), mas já pensando e reclamando mentalmente o porquê de não haver Red Hot. Não sei se é memória inventada, mas tenho por mim que já avaliei com minha mente proto-materialista que isso se devia à oferta e procura e que Iron Maiden era muito mais conhecido e interessante para as massas do que RHCP. Como uma pepperiana de carteirinha, aquilo me ofendeu, pois o funk rock tem seu — enorme — valor.


Capa de caderno "The Number of the Beast", do Iron Maden, com Eddie, mascote da banda, controlando uma marionete demônio no inferno.
Até hoje eu gostaria de ter a estátua do Eddie da Galeria do Rock

Aproveitei que aquele foi um dos primeiros anos em que ganhamos kit de cadernos, mochila e réguas do Governo do Estado e resolvi fazer minha própria capa. Eu já tinha computador e impressora, e passava as tardes baixando fotos de minhas bandas favoritas. Comprei contact e fiz minha primeira encadernação personalizada.


Caderno com a capa contendo asterisco vermelho, e foto dos integrantes da banda RHCP ao redor de uma televisão. 4 homens, sendo Anthony Kiedis segurando a gravata para cima em pose que simula enforcamento; Chad sentado na tv com óculos escuros e bandana; Flea sentado na tv sorrindo de cabelo azul e John sentado no chão, em pose de critos, bigode de Belchior encostado na tela da TV e derrubando areia com as mãos.
Throw Away Your Television: photoshoot da banda em 2002 para o álbum By The Way

Isso durou até o final do Ensino Médio, e minha primeira "freguesa" foi minha irmã, que pedia cadernos do Anthony Kiedis e Duff McKagan (nessa época a minha capa era uma foto bem indecente do Slash). Eu participava do flogvip e desde 2008 tenho blog, então aprendi a fazer umas colagens capengas (que ainda são melhores do que as que faço hoje), e as imprimia enquanto a variedade de bandas de rock clássico aumentava no meu repertório. Não achei, mas cheguei a ter capa de rock progressivo, de Pink Floyd a Jethro Tull, na universidade. Mas quis ser prática com a vida acadêmica e o primeiro emprego (se contar o estágio da adolescência, segundo emprego), então essa fase se encerrou.


Terminei a faculdade usando cadernos comuns e sem muita arte envolvida, no máximo meus sketches durante as aulas. Estudo melhor ouvindo professores enquanto olho para o caderno, escrevo, faço setas e desenhos. Isso me faz capaz de lembrar de uma aula, assunto ou mesmo palavra por associar ao pedaço da página, caneta ou desenho que fiz.


Anos se passaram, quase uma década. Terminei a faculdade e o curso técnico em museologia. O mundo mudou e chegou em São Paulo uma franquia de lojas japonesas chamada Daiso. Eu estava empregada, possuía salário e o gastava levianamente em cacarecos de até R$9,99 para me satisfazer momentaneamente. Foi assim que tive meu wannabe Moleskine e comecei a carregar para exposições e anotar minhas impressões das obras de arte. A casa é de ferreiro, mas o espeto é de pau: trabalhei com preservação e conservação, mas deixei mofar um dos cadernos, cheio de informações sobre Wassilly Kandinsky, Jean-Michel Basquiat, Paul Klee, Piet Mondrian e outros (os amo), além de sketches ruins de arquitetura de estações, metrôs, meus pés e mãos. Outro ainda sobreviveu e eu dei uma desmontada para aprender a fazer bolsos.


Enfim, todo caderno que eu considerava bonito na Daiso foi comprado. Canetas tinteiro também. Mas o tédio pós-trabalho me consumia, nunca vi sentido em viver para trabalhar (por mais que todos digam que trabalham para viver). Sempre tive muitos livros e no museu havia uma biblioteca. Decidi então tentar um curso novo no Centro Paula Souza: técnico em biblioteconomia. "Vou organizar meus livros e os do museu", disse para mim mesma.


O curso durou um ano e preencheu apenas um caderno: um comprado na Daiso com uma estética de caixa de remédio.


Por trabalhar em horário comercial, perdi alguns eventos externos do curso, um deles de encadernação promovido pela ABER na FESP. Vi os colegas com capas duras que lembravam muito enciclopédias dos meus anos de pesquisa offline na casa do vizinho, mas que, quando abertas, revelavam folhas em branco. Imagina, ter um caderno com cara de livro? Um livro já pronto, mas vazio de palavras, para você preencher? Senti muita tristeza e cometi um pecado que detesto: senti inveja.


O curso acabou e o tédio voltou, pois não posso ficar parada. Acho que desde o ano anterior passei a seguir a ABER numa rede social ou newsletter, e vi que havia um curso que eu estava tremendamente interessada, de caligrafia carolíngia — o padrão dos manuscritos da bíblia latina, que hoje sei que foi traduzida por São Jerônimo. Me inscrevi nesse e no de Álbum de conservação com caixa, para, mais uma vez, me ser útil no trabalho e em casa, preservando fotografias. O curso que eu mais queria, de caligrafia, não fechou turma. Fiz então o de álbum e tempos depois de encadernação japonesa.


Mais uma vez, a casa é de ferreiro, mas o espeto é de pau. Nunca me lembro de levar cadernos para eventos rápidos. No curso de álbum eu anotava em restos de papel que refilávamos 😂. No segundo, como aprendo com a experiência, peguei uns pedaços de papel e furei, fazendo uma costura que hoje sei ser borboleta, mas que antes na minha cabeça era só um movimento lógico que uma sobrinha de costureira fez. A professora e alunas acharam legal e eu aprendi as costuras japonesas clássicas.


No ano seguinte, comecei a especialização na PUC com um caderninho simples da Daiso. Brochura sem pauta, que hoje em dia prefiro. Como quase nunca se achava caderno sem pauta, comecei a fazer os meus com papéis que ganhei. A partir daí só uso encadernações minhas.


A ideia de vender cadernos não sei bem dizer de onde veio, talvez por amigas se interessarem e encomendarem. A partir daí percebi que trabalhar com as mãos era excelente para minha mente ansiosa, que a arte é fundamental para eu querer existir (e a História para dar sentido à vida), e aqui estamos.


Este ano fui a meu primeiro e segundo shows de estádio, sendo o primeiríssimo um sonho que eu nem imaginava que tinha: ver RHCP no Rio. Como lembrança dessa conquista, fiz cadernetas para mim e para quem me acompanhou, que foram duas irmãs: a de sangue e a que a vida me apresentou.



Essas foram minhas encadernações mais recentes, compare com as primeiras no início do texto. Foi também a primeira vez que estampei tecido, com um carimbo que fiz com borracha.


Olho para a Helen de dezesseis anos e a de quase 32 e penso: dei uma volta enorme, mas sempre, sempre algo me puxa para o rock and roll. Que alegria poder sonhar, e perceber o quanto cresci em conhecimento histórico e habilidades manuais, para poder manter vivo este gênero musical que participa sempre da minha individuação. Quando menina, quis escrever sobre história do rock no falecido blog Spitting out pieces, e agora realizo no Querido Clássico (e aqui, em breve); fazia as capas de caderno que não me eram oferecidas, e hoje esta é minha profissão. Como é bom viver.

 

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