Tenho ensaiado o início do blog do Estúdio São Jerônimo desde antes de o estúdio existir, e já pensei em diversos temas para inaugurar essa página. São Jerônimo, corvos, cadernos, História, escrita... Diversos são os temas que gosto muito de falar sobre.
Mas então eu entendi, depois de alguns eventos acontecidos no mês de junho, que o tema mais "Helen Araújo das ideias", como diria minha amiga Carole, é a migração nordestina e o cotidiano no migrante nordestino na cidade de São Paulo, já que é tema de metade dos meus trabalhos acadêmicos, e história de vida de meus pais, tios, primos, vizinhos — e também minha, considerando que morei na Paraíba dos 6 meses aos 3 anos e meio de idade.
E entre a calma do céu, deserto de asas, e o silêncio do mar, que os peixes comem, segue sempre o navio solitário: exilado em si mesmo — como um homem.
— Geir Campos, Marinha apud Larissa Fonseca, Revis(i)tas
O texto mais simples que eu poderia fazer é uma lista, tanto porque as dicas de escrita online apontam para essa estrutura de texto como algo preferido a ser lido através de uma tela — e isso garante visualizações e interesse pela minha página —, como porque tenho vivenciado uma crise na escrita, sem falar que a lista é um material útil para quem quer que seja: alguém puramente interessado em filmes brasileiros, alguém buscando ideias para planos de aula, alguém exilado em São Paulo com saudade de casa, algum estudioso do tema.
Os filmes citados abaixo foram todos utilizados como referência na minha monografia de especialização, e com certeza farão parte de outros trabalhos. O melhor de tudo é que estão todos disponíveis online, no youtube e vimeo, para estudos e atividades em sala de aula.
1. Viramundo (1965)
Dirigido por Geraldo Sarno, Viramundo aborda diferentes visões a respeito do trabalho e do trabalhador migrante, havendo aqueles que consideram se deram bem com a migração e, portanto, decidiram não voltar para a terra natal, bem como os que se deram mal e não viam a hora de voltar. Também há a opinião descarada do empregador que trata a mão-de-obra como descartável e provisória. O filme também mostra o refúgio do migrante pobre nas religiões cristã evangélica e de matriz africana. É interessante observar não somente a questão de classe, mas também a racial, que é explícita.
Com isso, os conflitos presentes no filme, na forma da oposição, entre emprego e desemprego, modernidade e atraso, norte e sul, capital e trabalho. Assim sendo, temos neste âmbito simbólico toda uma complexa inter-relação de cooperação e de conflito, em que estes valores (sofrimento, cura, caridade, fé) são estruturados e estruturantes, dando sentido às práticas dos fiéis (Carneiro, 2000).
—Carlos Henrique Gomes Pimenta
Você pode assistir ao premiado Viramundo no site do diretor, onde há diversos materiais para pesquisa (entrevistas, argumentos e roteiros), e a seguinte sinopse:
Viramundo foi pioneiro ao trazer nova imagem da classe operária brasileira, a do camponês de origem nordestina corrido da seca e da fome, e do surgimento de um sistema religioso neopentecostal, hoje hegemônico no Brasil. No filme, constrói-se de forma circular, do desembarque ao retorno a partir da estação de trem, o circuito da migração de trabalhadores do Nordeste para São Paulo, replicando o vaivém constante dos tangidos de um lado para outro no território nacional.
Geraldo Sarno é natural de Poções, BA, e faleceu no início de 2022, prestes a completar 84 anos, por complicações decorrentes da COVID-19.
2. Morte e Vida Severina (1977)
Produzido e dirigido pelo cearense Zelito Viana (irmão de Chico Anysio e pai do ator Marcos Palmeira, hoje com 84 anos), Morte e vida severina conta a história de
Severino, migrante fugido da miséria, sai do Sertão em busca de trabalho. Enfrentando as piores dificuldades, ele atravessa o Agreste e a Zona da Mata, morrendo aos poucos pelo caminho, até chegar ao litoral. A história é narrada pelo rio Capibaribe, que descreve documentalmente as regiões por onde Severino passa e o tipo de vida de seus habitantes, em alternância com a parte ficcional da caminhada retirante.
—(Guia de Filmes, 73/75)
Conheci esse filme em 2021, ao pesquisar a obra de João Cabral de Melo Neto para o texto João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque e tētēma: Funeral de um lavrador, publicado no Querido Clássico.
O objetivo era fazer um filme contundente sobre a realidade brasileira, um filme que mostrasse a fome, a pobreza, e a miséria no Brasil. O grande problema do Brasil é resolver a questão da desigualdade social, e eu fiz o filme para trazer esse tema para o debate nacional.
— Zelito Viana
A obra baseia-se nos poemas O Rio e Morte e vida severina: auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, que pode ser adquirido aqui.
3. Morte e Vida Severina (1981)
O especial de natal de Walter Avancini foi o primeiro que vi, e me emocionei bastante. Tinha lido o livro em e-book no celular, enquanto ia trabalhar, e não havia me emocionado tanto como atualmente, depois de ter visto os filmes e relido em papel. Na época fiquei feliz em saber que uma das personagens era Elba Ramalho, e Zé Dumont nos cenários está absolutamente incrível.
Talvez a cena mais famosa dessa versão seja a de Tânia Alves cantando Funeral de um lavrador, trecho do poema de João Cabral de Melo Neto que foi musicado por Chico Buarque em 1965 para peça de teatro apresentada no TUCA da PUC-SP. A canção ficou tão famosa que Cabral "afirmou que não conseguia repetir seus versos 'de memória sem as músicas de Chico'".
4. O Homem que virou suco (1980)
O Homem que virou suco é um filme do cineasta mineiro João Batista de Andrade, com trilha sonora do cantor e compositor paraibano Vital Farias. Conta a história de Deraldo, cordelista migrante confundido com Severino, operário de fábrica que mata o patrão a facadas após ser demitido; ambos os personagens são interpretados pelo ator paraibano Zé Dumont. O filme é um misto de ficção com documentário, já que em muitas cenas os transeuntes que interagem com o personagem não são figurantes, mas sim trabalhadores reais.
Anos antes de produzir o filme, João Batista havia feito um cordel de mesmo título, disponibilizado pela Imprensa Oficial.
Um homem não vale nada Fora de seu quintal Sem amigos sem dinheiro Em sua luta contra o mal De todo jeito que tenta Acaba em triste final
— O Homem que virou suco
Muito premiada, essa obra é considerada pela Abraccine um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Meu conterrâneo Chico me indicou esse filme, e depois outras pessoas fizeram o mesmo, ou vi trechos em páginas de cinema pelas redes sociais.
Em 2020, como atividade final da disciplina de pós-graduação Espaço urbano: história da cidade e suas representações, resolvi escrever sobre o filme, já que a disciplina falava da cidade, mas a docente não tocou em nenhum momento no tema migração, essencial para compreender a complexidade da cidade de São Paulo e outras "Metrópolis". Em defesa disso, optei por mostrar uma São Paulo que some nos discursos sobre a burguesia cafeeira e modernista (seja ela de direita ou de esquerda), mas que constitui a maioria da população construtora da metrópole. Depois publiquei no medium, porque "Isso aqui é São Paulo, entendeu?" deve ser de utilidade pública.
5. Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos (1998)
Em 2019 houve a exposição À Nordeste no SESC 24 de maio, em São Paulo. Exposição que visitei mais ou menos cinco vezes. Nela conheci esse documentário feito no final dos anos 1990, que diz muito sobre diversos familiares meus, por mais que tenham outros nomes que não os do título.
Tendo como trilha sonora o Maracatu Atômico na versão dos pernambucanos Chico Science e Nação Zumbi,
o vídeo traz 30 porteiros e zeladores que moram e trabalham em prédios residenciais na cidade de São Paulo. Todos migrantes do Nordeste do Brasil, eles compartilham um dos três nomes mais típicos da região: Raimundo, Severino ou Francisco. A peça revela um painel da imigração interna do país e sua integração silenciosa mas onipresente na história da construção civil e na estrutura econômico-social das metrópoles brasileiras.
— site dos autores
O filme do carioca Mauricio Dias e do suíço Walter Riedweg foi reproduzido em diversas instalações pelo mundo, a começar pela 24ª Bienal de São Paulo, em 1998, onde todos os Severinos, Raimundos e Franciscos participantes foram ilustres convidados do evento, e não estavam lá a serviço.
É possível assisti-lo e conhecer os bastidores e projeto, além de clipping da imprensa na época no próprio site de Dias e Riedweg.
Você pode ler minha monografia aqui.
A colagem que ilustra o texto é minha e foi utilizada em um trabalho acadêmico intitulado Migrantes, disponível no Behance.
Se você comprar os livros indicados pelo meu link de associada Amazon, estará colaborando financeiramente comigo sem pagar a mais por isso.
Referências
À NORDESTE. Catálogo de exposição.
ABDALLAH, Ariane; CANNITO, Newton. O Homem que virou suco de João Batista de Andrade.
ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco.
ARAÚJO, Helen Cristina Jerônimo de. Afastados da terra: narrativas sobre a construção dos bairros Jardim Alto Alegre e Recanto Verde Sol e histórias de vida de seus moradores, a partir da década de 1980.
ARAÚJO, Helen Cristina Jerônimo de. "Isso aqui é São Paulo, entendeu?"
ARAÚJO, Helen Cristina Jerônimo de. João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque e tētēma: Funeral de um lavrador.
ARAÚJO, Helen Cristina Jerônimo de. Migrantes.
AVANCINI, Walter. Morte e vida severina.
DIAS E RIEDWEG. Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas.
MORTE E VIDA SEVERINA. Base de dados na Cinemateca Brasileira.
MORTE E VIDA SEVERINA. Memória Globo.
MORTE E VIDA SEVERINA. TUCA 50 anos.
PAULA, Betse de. Zelito Viana: histórias e causos do cinema brasileiro.
PIMENTA, Carlos Henrique Gomes. Algumas considerações sobre o documentário Viramundo.
SARNO, Geraldo. Viramundo.
VIANA, Zelito. Morte e vida severina.
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